Arq. Bras. Cardiol. 2021; 116(1): 1-3


O Astronauta e a Jabuticaba

Andre d’Avila ORCID logo , Marco F. Vidal Melo

DOI: 10.36660/abc.20201098

Jabuticaba

O Brasil tem um ambiente médico peculiar. Intervenções tais como hidroxicloroquina, ivermectina desapareceram completamente do debate científico no resto do mundo. Essas e outras condutas não comprovadas, continuam a ser usadas apenas em ensaios clínicos. Em parte, graças a importantes contribuições brasileiras recentemente publicadas. Apesar de vários países terem aceito o resultado desses estudos brasileiros, conduzidos com todo o rigor que a gravidade da pandemia e o método cientifico exigem, muitos no Brasil insistem em questioná-los. Tal como a jabuticaba – natural e predominante, mas não exclusivamente nossa -, a discussão continua atual só no Brasil. Antes se dizia que os estudos feitos em outros países não se aplicavam à população brasileira. Agora, continuam a procurar o subgrupo do subgrupo onde a intervenção possa ser justificada e a partir dali extrapolar os eventuais resultados para toda a população mesmo sem qualquer comprovação científica. Como indivíduo, entendo que seja difícil aceitar evidência em contrário à convicção de alguém, mas como médico, essa atitude torna-se obrigatória.

Nesse ambiente de completa desregulamentação, vários colegas optaram por subscrever abaixo-assinado, criar sites promovendo condutas pessoais, escrever cartas a políticos e até organizar caravanas à Brasília para pressionar o Estado brasileiro a adotar condutas médicas por eles defendidas mesmo em face a evidência científica em contrário, ou seja, evidência da ineficácia da intervenção. Embora muitos deles sejam excelentes médicos em suas respectivas áreas de atuação, esse tipo de atitude só foi possível porque, com a desculpa de tentar ajudar, tudo se permite no Brasil. Houvesse algum tipo de norma propondo multa ou cassação da licença médica aos que promovessem condutas médicas não comprovadas, nada disso teria acontecido. Tal regulamentação seria, na verdade, semelhante a conduta dos conselhos éticos em casos de charlatanismo, quando atos médicos baseados em decisões consensuais não são aceitos como justificativa para isentar o infrator. Mas esse tipo de responsabilização e prestação de conta por condutas tomadas é muito falho ou inexistente no Brasil. Existe um termo em língua inglesa próprio para descrever essa imputabilidade chamada de “accountability”. Curiosamente, essa palavra não existe em português. Pra compensar, jabuticaba não tem tradução.

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O Astronauta e a Jabuticaba

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